terça-feira, 17 de julho de 2012

TODA RÊ BORDOSA




A maioria dos jovens que hoje está beirando os quarenta anos já teve contato com o trabalho de Angeli.

No meu caso, foi assim: na minha pré-adolescência um dia achei no lixo uma edição da Mad e tinha certeza de que era a melhor coisa que existia no mundo. Coincidiu que logo depois passei a trabalhar como office-boy e virei freguês de sebos comprando edições antigas e fiel todos os meses nas bancas de jornais.

Não sei como nem porquê caiu em minhas mãos uma edição da Chiclete com Banana. E logo de cara, já notei a sua diferença para com a Mad: um monte de personagens pelados, falando palavrões (sem frescuras) e todos os desenhistas brasileiros. Uau! Era tudo que eu precisava no auge dos meus 13, 14 anos!

Mas, pensando friamente depois de anos, talvez o que tenha me chamado mais a atenção foi o clima escuro das HQs e o retrato da cidade de São Paulo, geralmente presente no trabalho do Angeli, Marcatti e Luiz Gê. Afinal, era fácil me identificar: eu trabalhava nas ruas e conhecia a maioria dos cenários retratados nas histórias sujas desses autores. Então lá estava eu novamente nos sebos completando minha coleção da Chiclete. E essa revista ainda me apresentou outras maravilhas como Piratas do Tietê, Níquel Náusea, Circo, Animal, Geraldão... Ah,  com tudo isso, quem precisava da Mad? Aos poucos, fui botando adiante todas as revistas com a cara de Alfred E. Newman.

Cheguei a completar a coleção da Chiclete, juntei muitas das outras, fiquei emocionado quando vi o Bob Cuspe no lendário Painel do Anhangabaú (para quem não sabe do que se trata, era um painel de led que ficava em um dos prédios no Vale do Anhangabaú, centro de SP, próximo ao Edifício Martinelli), e passei a copiar os desenhos da maioria dos cartunistas que faziam parte dessas revistas. Cheguei até ganhar um concurso no programa CEP MTV, com uma releitura do personagem punk. Enfim, era um grande fã desse povo todo.

Mas a gente cresce e as coisas vão sumindo misteriosamente de nossas vidas. Não foi diferente com as minhas revistas: vinha um, pegava emprestado e nunca mais devolvia. Uma enchente em casa levou mais uma parte e nas arrumações sempre aparecia uma destruída ou mesmo detonada por ratos (roídas ou mijadas).

O fato mais marcante foi uma vez que emprestei toda (eu disse toda!) a minha coleção da Chiclete para um carinha que trabalhava comigo (assim como umas demo-tapes de bandas de punk rock argentinas). Dei todas as recomendações possíveis, e era certo que ele não iria dar mancada! Não iria mesmo se dias depois ele estava sendo procurado pela polícia por não pagar pensão para a filha que tinha com uma ex-namorada. Enfim, o cara nunca mais apareceu. Tampouco a minha suada coleção de revistas...

Mas por que estou contando toda essa história? É para mostrar o quanto minha vida foi influenciada pelos personagens de Angeli. E, por isso, toda vez que sai alguma coisa relacionada aos seus personagens fico muito animado!

Não posso esconder que meu personagem favorito da família Angeli é o Bob Cuspe, afinal, ele curtia o mesmo som que eu, pensávamos relativamente parecido e, enfim, ele era o cara! Mas também curtia muito as aventuras dos terríveis Os Escrotinhos, tinha uma atração fatal pela endemoniada Mara Tara, era cheio de vontade de socar o Walter Ego, me diverti com as furadas em que Bibelô se metia em suas tentativas frustradas de conquistar as mulheres... Mas a heroína de todos os tempos era mesmo a diva aos avessos, Rê Bordosa.

Rê era uma típica mulher paulistana que optou em ser solteira e se entregar de corpo, alma e copo para a humanidade, independente de cor, tamanho, etnia, classe social, gênero etc. etc. O lance dela era chutar o balde da vidinha simples e do destino pré-determinado pela sociedade (nascer, casar, parir e morrer gorda). Observando com mais atenção, a Rê era uma extensão do Angeli que passou (ou ainda passa) pelas mesmas crises existenciais que a sua cria.

E ela foi um carma na vida do criador. Tanto que na época em que produzia a tira tanto para a Chiclete, quanto para a Folha de S. Paulo, ameaçou várias vezes dar um fim na "Mulher Esponja". Principalmente quando aparecia em cena em suas crises. Ela merecia morrer. Não, merecia morrer duas vezes! E essas foram as saídas para Angeli se livrar de Rê Bordosa.



Pronto. Acabou. Não. Não acabou. Isso não poderia ficar assim. E foi assim que pensou Cesar Cabral quando lançou o incrível Dossiê Rê Bordosa, um filme feito em stop motion, que ganhou um monte de prêmios em festivais de cinema Brasil afora.

Nesse filme, algumas pessoas próximas de Angeli (como o editor Toninho Mendes, o cartunista Laerte, a ex-esposa de Angeli) e de Rê Bordosa (Bibelô, Bob Cuspe) dão testemunhos sobre a morte da porraloca. Inclui cenas de sadismo do criador na criatura.

Parte dos personagens desse filme foram apresentados na exposição Ocupação Angeli, que ficou em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo. Essa mostra exibiu muitos materiais incríveis do cartunista. Perdeu feio quem não foi.


Pronto. Acabou. Também não.

Parodiando a publicação do cartunista argentino Quino, que lançou Toda Mafalda, a Cia. das Letras (pelo selo Quadrinhos na Cia.) acabou de lançar Toda Rê Bordosa. E não foi no tradicional papel jornal da Chiclete: veio em uma edição luxuosa, com uma capa feita de forma pouco convencional, com mais de 200 páginas. Como o próprio nome sugere, estão compiladas nesse livro todas as HQs da puta velha, publicadas em diversos veículos em formas de tiras e histórias longas. É uma verdadeira festa do cabide!

Embora as histórias mais antigas sejam muito engraçadas e nos transporte lá pro final dos anos de 1980, acredito que o auge do livro esteja na série "Memórias de uma Porraloca", de 1996. Nesse capítulo, Angeli é surpreendido com um incêndio em seu estúdio causado pelo diário da morta, no qual conta mais trechos de mais roubadas que se meteu por tocar essa vida leviana.

O senão para esse lançamento fica pelo material da capa que se enverga conforme você vai lendo, ficando deformado. Uma pena uma editora do porte da Cia. das Letras não ter feito uns testezinhos básicos para resolver essa questão. Mas ganha um desconto, afinal, quer coisa mais torta que a vida de Rê Bordosa?

Esse é um lançamento que não sei se a molecada de hoje curtirá ou entenderá a sua essência, afinal, nesse mundo de hoje acontece tanta coisa que, talvez, a vida de Rê não seja algo tão chocante assim pra juventude. Mas certamente vai agradar muito os quase (ou já) quarentões que um dia já sonharam em dividir uma banheira com essa musa do anti-tudo (tirando bebidas, drogas e sexo, claro!).

Pronto. Acabou agora? Humm... Prefiro não arriscar. Mas uma coisa é certa: com esse lançamento, a nossa heroína, enfim, descansa em paz!



2 comentários:

Andarilhos do Underground: ZINAI-VOS!!!