quarta-feira, 28 de novembro de 2012

DESOSSANDO ENDOAPOCALIPSE


O zinista Flávio Grão pode ser considerado um dos zineiros mais audaciosos da atualidade. Como se não bastasse lançar um zine como todo ser normal (ou com as faculdades mentais pouco danificadas), resolveu fazer uma versão em formato de livro.


E justiça seja feita: o trabalho e dedicação que teve para produzir essa história justifica cada centavo gasto nesse grande empreendimento. Afinal, é difícil descrever a grandiosidade dessa obra e o marco que representa dentro das publicações independentes.

Grão, com seu traço grosso e que remete à xilogravura, conta uma história sem usar uma única palavra, ou mesmo algum quadro, apenas conduzindo o leito por meio de ilustrações sequenciais que o conduz por um mundo imaginário (ou não). Ao mesmo tempo que o leitor (ou observador) tenta decifrar as mensagens subliminares, é conduzido à reflexão do mundo e de si. O caos conduz todo esse universo em plena ebulição.

Endoapocalipse é o terceiro número da série Manufatura. Todas as demais histórias seguem no mesmo estilo poético-filosófico, sem textos, balões e quadros, tornando essa a fase mais marcante e intrigante na obra de Flávio Grão.

Esse mais recente lançamento ganhou até um vídeo clipe:



Por ser uma obra ímpar, esse material merecia uma análise profunda e, em um e-mail para o autor, o Doutor em Educação, zineiro, ilustrador e sábio Elydio dos Santos Neto fez um raio-x da publicação, a qual autorizou para postarmos aqui no Zinismo.

O estudo feito por Elydio se divide em duas partes: uma em que deu uma olhada despreocupada, sem se aprofundar em detalhes; e outra já fazendo uma análise mais cirúrgica.

Atenção: o texto abaixo contém SPOILER! Caso prefira decifrar Endoapocalipse de sua forma, sem influências, recomendo que leia a produção de Elydio depois de tirar suas próprias conclusões...

- x - 
Minha sequência de leitura/visualização, a partir da qual, escrevo meus comentários, foi feita da seguinte maneira:

1. Ocupei tempo em decifrar, para mim, o que significa a expressão Endoapocalipse;

2. Fiz uma primeira leitura, sem maiores preocupações, mas já influenciado pela minha compreensão de Endoapocalipse;

3. Li seu processo de produção da obra;

4. Fiz a minha segunda leitura, agora com suas informações.

O significado de endoapocalipse para mim, Elydio

O prefixo grego ENDO significa para dentro, interno. De meu pouco conhecimento sobre a Bioenergética sei que tudo o que é ENDO está relacionado aos nossos tubos internos, da boca até o ânus, e tem a ver com o mundo das nossas emoções e como lidamos com elas. Segundo esta corrente de psicoterapia também o formato de nossos corpos é definido a partir de como lidamos com o nosso mundo ENDO. APOCALIPSE é caos, guerra, morte, transformação, fim de um tempo, passagem, mudança.

Assim o Endoapocalipse começou a se desenhar para mim como uma narrativa de conflitos apocalípticos motivados pelo desequilíbrio do mundo interno, de modo especial do mundo relativo às emoções.

A primeira leitura de ENDOAPOCALIPSE, rápida e sem maiores preocupações

Chamou-me a atenção o fato da narrativa começar com uma criança, assim interpretei, lendo um livro. Fanáticos aproximam-se. Há luta pelo poder e para destronar o poder assumido. Na luta percebe-se que há o grupo dos “mascarados de madeira” e o grupo daqueles que não se desumanizaram. Há morte, transformação e libertação, mas volta-se às crianças consumindo uma fruta de madeira que pode ser o recomeço de novo ciclo de desumanização.

Minha observação sobre seu processo de produção desta narrativa

Gostei demais de ter lido a narrativa da produção. É muito interessante ver como a obra foi sendo construída: o primeiro passo, as intuições, as dúvidas, as possibilidades, as tentativas, as insatisfações, os rabiscos, as escolhas, os cortes, a influência da linguagem dos quadrinhos, o aspecto fanzineiro em diálogo com o livro-arte, a aproximação à outra linguagem artística. Muito legal. A leitura do processo de produção também me confirmou a interpretação que eu vinha fazendo sobre as máscaras de madeira. Inicialmente não tinha bem certeza se era isso, embora houvesse muitas evidências que me encaminhassem para esta leitura. As explicações sobre as torres, o barril de madeira e as máscaras foram fundamentais para mim.

Embora sua narrativa não seja, a rigor, uma história em quadrinhos, eu a li como uma narrativa de história em quadrinhos na qual o requadro se identifica com cada página-suporte, embora não haja textos, nem balões, nem recordatórios. Cada página é, para mim, um grande requadro.

Minha segunda leitura, após a leitura de seu processo de produção



Quadro 1 – Um menino lê, encostado numa pedra, sob uma árvore, um livro que ensina algo sobre máscaras de madeiras. Talvez ensine sobre como ser um mascarado. Uma tempestade se aproxima no horizonte.

Quadro 2 – A tempestade traz algo que é ameaçador, embora não seja claro exatamente o que é.

Quadro 3 – Aproximam-se seres portando sobre suas cabeças torres de poder. Estão como numa marcha ou numa procissão. Empunham estandartes. É uma caminhada de afirmação de poder. Lembrou-me muito a conservadora TFP (Tradição, Família e Propriedade).

Quadro 4 – Do quarto um ser humano observa. Ele está deitado. Parece não ter força nos membros do corpo.


Quadro 5 – Esse alguém no quarto é diferente. Sua cabeça tem a ver com a madeira, com a árvore, com um transformação interna na qual sua humanidade vai sendo esquecida. Quadro 6 – O processo se completa. O ser agora é um “cabeça de madeira”. No chão vêm-se muitas máscaras de madeiras amontoadas, o que parece um sinal de que o processo de transformação em cabeça de madeira é um processo social que envolve muitos e que se perde no tempo.


Quadro 6 – O processo se completa. O ser agora é um “cabeça de madeira”. No chão vêm-se muitas máscaras de madeiras amontoadas, o que parece um sinal de que o processo de transformação em cabeça de madeira é um processo social que envolve muitos e que se perde no tempo.


Quadro 7 – Mostra o “processo educativo madeirante”, isto é, o processo educativo segundo o qual na convivência com adultos cabeças de madeira, as crianças também vão se transformando em cabeças de madeira. Esta imagem me lembra muito do conto de Rubem Alves: “Pinóquio às avessas”.

Quadro 8 – Mostra uma mulher cabeça de madeira. É um feminino que está tão preocupado com seus aspectos externos (maquiagem, compras, roupas...) que esqueceu seu aspecto ENDO e acabou se desumanizando. À sua volta as coisas pegam fogo, mas ela não percebe.

Quadro 9 – Um ser, cabeça-de-torre-de-madeira, mostra seu poder e está liderando uma massa de cabeças de madeira. Eles puxam “cordas” que estão ligadas ao céu. A sensação que se tem é que puxar as cordas do céu daquela maneira, como se fossem abri-lo, é uma atividade que dá muito poder.

Quadro 10 – Aparecem muitos cabeças de madeira puxando cordas do céu como para romper certa ordem e introduzir o caos.

Quadro 11 – A partir deste quadro o caos apocalíptico, doENDO, começa a aparecer com maior clareza. Aqui, por exemplo, um soldado cabeça de madeira carrega uma enorme bomba, com certeza para se detonada e introduzir destruição no céu rompido por meio da GUERRA.


Quadro 12 – Outro ser, também cabeça de madeira, foge com alimentos para introduzir a FOME.


Quadro 13 – Cabeça de madeira, ferido e sangrando, assim mesmo despeja balas
para matar num sinal de que a GUERRA produz DOENÇAS MORTAIS que se espalham tal qual peste.

Quadro 14 – Uma verdadeira besta do Endoapocalipse, num cavalo-coisa, é a própria personificação da MORTE a espalhar a idolatria do dinheiro dos máscaras de madeira. As notas como que se colam nas mãos dos cabeças de madeiras, esquecidos de si mesmos e de sua humanidade.

Quadro 15 – Este quadro mostra que ainda há humanos que não se madeirificaram, não se desumanizaram. Eles se reúnem, guiados por um líder, sob o céu rompido.

Quadro 16 – Os humanos se rebelam, transgridem, fogem de seus esconderijos. Agem e atacam os cabeça de madeira.

Quadro 17 – Na medida em que as máscaras de madeira vão sendo destruídas percebe-se que seus “moradores” são seres humanos. Eles estão esquecidos de que são seres humanos, mas o são.

Quadro 18 – Um dos cabeças de madeira cai na água do que parece ser um rio. É o rio das próprias emoções que tiram a máscara de madeira e, paradoxalmente, a transformam num bote salva-vidas, sinal de que a máscara, quando vivida sem reprimir o ENDO e sem negar o humano, pode ajudar o ser humano a lidar com a relação entre o “ENDO interno” e as exigências exteriores da sociedade.

Quadro 19 – No entanto, outros máscaras de madeira vão se enrolando e se perdendo no emaranhado dos fios/cordas que estavam puxando dos céus.

Quadro 20 – Muitos cabeças de madeira são presos e conduzidos, em grupos e algemados, para um lugar onde se dará alguma transformação.

Quadro 21 – Os cabeças de madeira presos passam pelo processo de transformação da morte e suas energias retornam aos céus.

Quadro 22 – Os “humanos vencedores” costuram o céu para restaurar a ordem do caminho humano e para impedir contato com a energia dos cabeças de madeira que foi recolhida nos céus. Paz, ao menos temporariamente...

Quadro 23 – ...Porque nova borrasca se aproxima.

Quadro 24 – A borrasca aumenta e aumenta...

Quadro 25 – Crianças, no meio da borrasca, vão apanhar um fruto, das árvores ali fincadas, para comer...

Quadro 26 – Surpresa! O fruto tem a semente dos cabeças de madeira... O processo madeirizante/desumanizador pode recomeçar, ameaçando romper novamente os céus, se os humanos não estiverem atentos, de modo especial, em seus meninos e meninas.

Minha interpretação “final” de Endoapocalipse
Num trabalho artístico de excelente qualidade você faz, Flávio, um grito de alerta à nossa humanidade presente: Se sucumbirmos diante das exigências do mundo externo-social, simplesmente reproduzindo o que a sociedade deseja de nós e esquecendo de cuidar de nosso mundo interior (ENDO), então estaremos constituindo um processo desumanizador que pode terminar em manipulação, negação do si mesmo e infelicidade.

Para Jung a máscara deveria ser um instrumento de proteção à exposição de nossa psique, mas ela pode ser altamente danosa quando o sujeito se confunde com a própria máscara. As máscaras não somos nós por inteiro e nós não somos as nossas máscaras quando nos percebemos inteiros. Portanto, máscara pode ser desumanizante. Máscara que impõe sermos o que o outro (a sociedade dominante) deseja que sejamos estabelece um putrefato processo de necrofilia.

As máscaras, porém, de acordo com você não precisam necessariamente serem vencedoras. Há esperança de transgressão dos humanos ainda não cooptados pelo DESEJAR dos outros. Mas esta esperança há que ser sempre atenta e estar sempre vigilante, pois os frutos dos cabeça de máscaras permanecem mesmo quando eles já foram transformados.

2 comentários:

Andarilhos do Underground: ZINAI-VOS!!!